Artigos, entrevistas, notícias, vídeos, documentários, legislação.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

DOUTRINA ESTRANGEIRA: Constituição como gramática de conflitos sociais - Günter Frankenberg

Günter Frankenberg
Professor de Direito Constitucional e Filosofia do Direito da Universidade de Frankfurt, Alemanha.


SUMÁRIO:

I – O si mesmo, a vontade & o fardo;

II – Sobre a gramática constitucional;

III – Constituição como âmbito para a integração social através de
conflito;

IV – Sobre uma teoria de conflitos integrativos e desintegrativos;

V – O terrorismo e a gramática da liberdade e da segurança.



I – O SI MESMO, A VONTADE & O FARDO


Jamais houve tanto “si mesmo” quanto na modernidade. Sob o signo da autonomia, foi dada,
aos homens modernos, a tarefa de afirmar a si mesmos no mundo, isto é, de determinar seus
destinos e sua história. Sob o signo da democracia, sociedades modernas necessitam organizar
e governar a si mesmas. O Direito moderno pode se fundamentar a partir de si mesmo. Ou
seja: sem recorrer a um Direito mais elevado em virtude de religião, natureza ou tradição.
Como se dá? Um feixe de idéias e eventos concatenados, sobretudo o iluminismo filosófico,
as grandes revoluções democráticas e as guerras de independência, bem como a secularização,
prepararam, para o homem moderno, para a sociedade moderna – ou simplesmente: para a
modernidade –, o caminho para assentar a si, suas vidas e seu futuro em um plano de
salvação, para assegurar a si mesmos recorrendo a certezas religiosas ou tradicionais. Todos
estamos, queiramos ou não queiramos, ancorados no aquém.
É óbvio que se libertar de poderes do além, metafísicos, transcendentais, provoca efeitos e
reações altamente ambivalentes: por um lado, a vontade de autodeterminação; por outro, o
fardo da auto-afirmação. A vontade se mostra de forma especialmente clara e desenfreada no
momento da libertação, emancipação revolta e revolução. Ela também tem a palavra nos atos
constituintes da Carta Magna: “We the people” são os termos denotadores de consciência de
si, encontrados na Constituição dos Estados Unidos. Ou ainda: “Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte [...] promulgamos [...] a seguinte
Constituição”; ou: “[...] o povo alemão [...] em virtude do seu poder constituinte [...] adotou
esta Lei Fundamental”: são palavras proclamadas euforicamente nos preâmbulos das duas
Constituições.
1Tradução do original alemão de Tito Lívio Cruz Romão (cruzromão@terra.com.br).
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 59
Tal qual uma sombra, a euforia inicial vem acompanhada daquele fardo, a emancipação e a
perda (também ali presente) do antigo mundo, da tradição e religião – em poucas palavras: as
perdas das certezas – revelam-se uma impertinência. Mais precisamente: como impertinência
ativista: Do it yourself! – eis o lema moderno. Exige-se de nós que organizemos, nós mesmos,
nosso mundo das diferenças e dissonâncias e regulemos, nós mesmos, as contínuas
controvérsias. Um primeiro passo na tentativa de corresponder a essa impertinência, por sua
vez, faz com que as sociedades se dêem uma Constituição. E aí, nos preâmbulos, a incerteza –
ao lado da euforia – também tem a palavra: as elites constitucionais evocam – por um lado,
visando a corroborar sua coragem para uma creatio ex nihilo, por outro lado, assustadas com
o abismo de sociedades de conflito – o auxílio de poderes mais elevados, geralmente divinos:
a Santíssima Trindade (na Constituição irlandesa), a Divina Providência (na Declaração de
Independência dos Estados Unidos), a “proteção de Deus” na Constituição brasileira de 1988.
Com um tom mais atenuado, os autores da declaração francesa dos direitos do homem e do
cidadão declaram-se “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo”. Às vezes, os autores
de preâmbulos constitucionais procedem de forma ainda mais indireta e recorrem à linguagem
religiosa – “We [...] do ordain [...] this Constitution” – para sacralizar o ato secular mais
supremo da promulgação da Constituição.
Uma forma transcendente semelhante também pode ser averiguada nas constituições
socialistas, que são – do ponto de vista teórico – especialmente seculares, embora aqui a força
legitimadora da tradição ou da história seja invocada de modo um tanto mais discreto.
Por que tanto medo e insegurança perante o si mesmo? Porque doravante a emancipação, a
revolta, a independência perante poderes estrangeiros libera o olhar para a sociedade
irremediavelmente dividida em contendas. Nesta, os conflitos estão programados para
durarem. Com celeridade, os constituintes invocam a unidade e a harmonia social da
sociedade fragmentada (p.ex., a Constituição brasileira de 1988), a domestic tranquility após a
Guerra Civil (na Constituição estadunidense) ou, de forma relativamente vaga, o bem-estar
(na Déclaration francesa).
Com essas palavras, cheguei à pergunta central de um livro por cuja versão para a língua
portuguesa gostaria de apresentar aqui meus agradecimentos: como se podem constituir
juridicamente sociedades conflituosas?
60 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
Essa pergunta já contém a resposta ao por que de Constituições e igualmente a condição de
sua necessidade: conflitos sociais. Temos, aí, o seguinte resultado: em primeiro lugar, uma
sociedade que viva em paz consigo mesma não necessita de Constituição. Em segundo lugar,
quanto mais não resolvidos forem os conflitos e quanto mais agudas as transformações
prenhes de conflitos em uma sociedade, com maior freqüência as frentes de conflitos deverão
ser redesenhadas constitucionalmente e as ofertas de solução corrigidas. Um exemplo
ilustrativo disso é a instável história constitucional brasileira com sua série de promulgação
de novas Cartas Magnas.


II – SOBRE A GRAMÁTICA CONSTITUCIONAL

Em um segundo momento, esta tese deseja explicar que Constituições são textos que não são
reunidos de forma qualquer, ou seja, não se trata de acúmulos de textos desordenados; em vez
disso, seguem as regras de uma gramática, as quais, por seu turno, são devidas a um arranjo
dos conflitos no seio da sociedade.
O que desempenha, o que “faz”, pois, uma gramática da Constituição?
Os estudantes de Direito normalmente passam por uma introdução que os confunde: a partir
do primeiro semestre, são obrigados a aprender uma nova linguagem, um novo vocabulário.
Uma língua estrangeira, como parece. No dicionário do direito não está – ou não parece estar
– nada daquilo que ele é no dia-a-dia: já se começa com as normas jurídicas. Elas não são
simplesmente normas apenas sociais ou técnicas, mas algo especial: leis, decretos, portarias
etc. que surgem em processos especiais e são legitimados de forma especial.
No Direito, acordos tornam-se “contratos”. Injustiças gritantes tornam-se violações dos
direitos humanos. Atrocidades tornam-se corpos de delito.
A primeira tarefa da gramática consiste, portanto, em ela designar, por meio de conceitos
jurídicos, determinados fenômenos e, com isso, destacar o vocabulário profissional.
Justamente a isso chamamos juridificação da linguagem quotidiana.
E o que isso tem a ver com conflitos? Seus elementos são traduzidos para o instrumento do
Direito. Não basta apenas estabelecer uma pretensão ou apresentar uma violação de
interesses. Não é mister exprimi-los na língua, fazendo-os valer como pretensão jurídica ou
violação de Direito. Não basta designar como catástrofe o teste de arma atômica ocorrido em
um país paupérrimo ou classificar Guantánamo como escândalo. Não, nas declarações
oficiais, isso se tornará “violação do Direito Internacional”. Essas traduções fazem a ligação
entre o quotidiano e o jurídico. A gramática do Direito tem como alvo a argumentação
jurídica.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 61
Em segundo lugar, a gramática ordena o vocabulário jurídico. Ela categoriza. Acontece um
processo de organização conforme as áreas jurídicas. No primeiro campo, encontramos os
direitos (fundamentais) e princípios; no segundo, valores e deveres; no terceiro,
regulamentações de cunho organizacional; e, por fim, no quarto campo, as normas que fazem
referência à própria Constituição, à sua interpretação, à sua aplicação, à sua modificação e à
sua validade. O sistema organizacional constitucional tem validade universal.
E o que isso tem a ver com conflitos? A Constituição faz reconhecer que controvérsias ela
considera essenciais e que configurações de conflitos ela regulamenta – Estado/cidadãos,
depois também contendas no âmbito do aparelho do Estado ou entre a Federação e cada um
dos estados que a compõem. A seguir, concentrar-me-ei nos conflitos entre os cidadãos e o
Estado, bem como nos conflitos entre cidadãos.
Mas, antes disso, passemos à terceira tarefa. Ela conduz ao uso do Direito ou da Constituição.
O Direito constitucional não é, pois, um mero acúmulo de normas; não é uma massa textual
desestruturada. Não, a Constituição surge como unidade sistemática. Quem estuda Direito
constitucional precisa, por esse motivo, aprender as regras que controlam a aplicação, a fim
de manter a unidade da Constituição.
É verdade que sabemos, pelas observações do dia-a-dia, que aquilo que a Constituição “diz”
de modo exato é sempre indeterminado, que uma Constituição – como a totalidade do Direito
– está sempre marcada por lacunas e contradições. Não obstante, regras de interpretação são
apresentadas incansavelmente, para determinar o verdadeiro significado de uma norma
constitucional em um litígio. É aí – nos métodos – que se revela a aplicação da Constituição
como ciência.
Na realidade, sabemos que nunca é determinantemente previsível como um conflito jurídicoconstitucional
será resolvido, no final, pelas instituições declaradas competentes – Tribunais,
Tribunal constitucional, Senado, Câmara Federal ou quaisquer que sejam os órgãos
responsáveis. No entanto, as regras nos dizem que temos de respeitar o decurso do processo.
Isso é chamado de esgotamento das vias legais. Outrossim, sempre se precisa fundamentar,
argumentos jurídicos precisam ser apresentados.
E o que isso tem a ver com conflitos? Eles são deslocados: os conflitos étnicos, econômicos,
culturais, sociais são transferidos, enquanto conflitos políticos, para o palco parlamentar e –
eis o nosso interesse primeiro aqui – para os fóruns judiciais enquanto conflitos legais. Ali
eles são solucionados segundo regras: não se trata de ação popular, mas de ações ou queixas
de sujeitos do Direito com capacidade para demandar, que se têm de ater às formas e aos
prazos. Dessa forma, conflitos são filtrados, disciplinados e, de certa maneira, reencenados
juridicamente.
62 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
No final, não são as pessoas indignadas, sofredoras, humilhadas, as vítimas e os autores, que
falam, mas os advogados, que dominam a gramática do Direito.
No final, o Direito não produz nenhum resultado, mas justifica um resultado: porque as
pessoas afetadas participaram do processo, porque obtiveram assistência jurídica, porque
propuseram a ação demasiadamente tarde ou de modo contrário à forma vigente, porque não
esgotaram as vias legais, porque a liberdade de expressão não permite ofensas a outrem nem
ao Estado, porque liberdade encontra seus limites nos direitos dos outros e nos imperativos da
segurança nacional etc. Justificação por meio do Direito exprime de forma precisa o paradoxo
do Direito moderno e da Constituição moderna: Direito como Direito por meio do Direito.


III – CONSTITUIÇÃO COMO ÂMBITO PARA A INTEGRAÇÃO SOCIAL
ATRAVÉS DE CONFLITO


Constituições sonham o sonho de um mundo indene. Têm como meta – contra a própria
convicção de seus autores – a “harmonia social” (como no Brasil), tranquility (Constituição
Federal dos Estados Unidos), solidariedade internacional (China), paz, compreensão entre os
povos e segurança coletiva (Alemanha). Pode-se chamar a isso idéias reguladoras, utopias,
valores centrais, lírica ou ideologia – mas, por trás, sempre se esconde uma teoria de conflitos
sociais.
Pode-se discutir se a linguagem das Constituições – pelo menos o seu vocabulário sobre
direitos humanos o é – é universal ou mais, como uma língua nacional ou um dialeto,
particular e vinculada a contextos. No tocante às regras e aos princípios da gramática
constitucional que estrutura a imagem de conflitos sociais, em função de seu caráter abstrato,
não se deveria contestar que elas possuem validade transnacional ou, mais exatamente:
podem mudar contextos sem perdas de significado.
1. Isso pode ser ilustrado pela dupla função de constituições, ou melhor: pela dupla tarefa que
se lhes coloca e que se encontra registrada no título do livro como “autoridade e integração”:
Em primeiro lugar, Constituições são consideradas uma autoridade secular que às outras – tais
como tradição, religião, igreja, monarquia etc. – reprime e substitui. Constituições respondem
à pergunta: quem deverá decidir por todos de forma vinculatória? Com sua resposta, as
Constituições autorizam: elas permitem, emitem licenças, sancionam, regulamentam,
proíbem, impõem limites etc. No vocabulário liberal da justificativa, isso quer dizer:
Constituições legitimam – tanto o uso de liberdades como também intervenções do Poder
Público, a promulgação de leis como também seu exame constitucional, a arrecadação de
impostos como também as transferências constitucionais para estados e municípios.
Constantemente, conflitos de distribuição são solucionados de maneira autoritativa.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 63
Em segundo lugar, Constituições têm a tarefa de integrar as “sociedades dos indivíduos”. Por
meio da coordenação de ações e conseqüências de ações, do estabelecimento de um marco
simbólico de pertença, de ofertas de identidade, as Constituições devem transpor o atomismo
social para uma coletividade jurídico-política: “We the people”, o povo alemão, o povo
brasileiro, a nação francesa etc. Concomitantemente, deve ser construída uma comunidade
pós-tradicional – afinal de contas, somos modernos. Constituições empreendem essa tarefa
por meio:
– da inserção da coletividade em uma forma estatal – democracia, república e Estado
de Direito;
– regulamentação do status da afiliação: chamado de nacionalidade ou cidadania;
– do estabelecimento de valores supostamente compartilhados pela coletividade, que
dão contornos ao bem-estar: justiça social, paz, solidariedade (cf. art. 3º da
Constituição brasileira) ou proteção de minorias etc.
2. O fato de Constituições contarem com conflitos, ou seja, de terem uma idéia ou teoria de
conflitos sociais, também resulta da distinção elementar entre estado de normal e estado de
exceção. Essa diferenciação baseia-se na pergunta de Hobbes sobre segurança e autoridade:
quem decide e garante a segurança?
Primeiramente, sobre o estado de normalidade:
Nas relações entre cidadãos e Estado, os cidadãos têm o direito a recurso. Este se manifesta
no uso das liberdades, notadamente as liberdades de comunicação, bem como na prevenção de
excessos por parte do Estado. Nas relações dos cidadãos entre si, colisões entre esferas de
direitos fundamentais ocorrem no estado de normalidade. As controvérsias daí resultantes
geram intervenções estatais de acordo com as primazias constitucionais da lei, tomando por
base as leis no âmbito da proporcionalidade. No final, encontra-se, em diversos sistemas
jurídicos, a ida a um tribunal constitucional. No estado de normalidade, as controvérsias nas
relações Estado-Estado têm o caráter de conflitos de competências – conflitos federais,
interorgânicos ou intra-orgânicos. Também estes deságuam, eventualmente, em uma
conciliação constitucional do conflito (conflito entre órgãos, conflito entre a Federação e os
estados, controle normativo etc.).
O estado de exceção:
Comumente, designamos os conflitos nas relações entre os cidadãos e o Estado como
resistência, levante, guerra civil ou terrorismo. Tais conflitos se encontram fora da ordem
jurídica. Ou, mais precisamente: eles excedem os limites do legalmente permitido. Aqui se
deve distinguir – de acordo com a intensidade da crise – entre dois modelos de reação
totalmente diferentes. Por um lado, valem as competências normais/autorizações de
intervenções por parte do poder estatal, principalmente o Direito Penal. Por outro lado, o
poder estatal faz valer competências de emergência. Diversas Constituições incorporam um
Direito de emergência do poder estatal estreitamente delimitado e destinado a situações de
catástrofes e crises de efetivos (p.ex., no caso de ataques militares). De certa forma, o estado
de exceção passa por uma juridificação.
64 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
No Direito e no debate jurídico, especialmente no tocante ao terrorismo e à criminalidade
organizada, viu-se surgir, nos últimos anos, um “Direito de emergência normalizado” como
uma espécie de Constituição secundária. É assim que, em primeiro lugar, na República
Federal da Alemanha se exige ou já se constata empiricamente a necessidade de um Direito
Penal do inimigo voltado contra terroristas. Em segundo lugar, o Direito Policial evoluiu e
uma parte considerável sua acabou dando origem a um Direito Policial Especial que dissolve
as estruturas do Estado de Direito e dá prêmios de intervenção ao Executivo. Em terceiro
lugar, existe, por fim, um número considerável de vozes que advogam pela reinstituição da
tortura como tortura salvadora, visando à prevenção de perigos. Como cenário, recorre-se,
em todos esses casos, à imagem da “bomba fazendo tique-taque”, para se garantirem, ao
Executivo, poderes especiais que não disponibilizam Direito e Constituição em si: apenas o
autor sabe onde esta bomba se encontra instalada e apenas ele pode desativá-la e salvar um
sem-número de vidas humanas. Sem entrar em detalhes sobre a problemática desse cenário,
gostaria apenas de destacar que a tendência é se limar a distinção entre estado de normalidade
e estado de exceção. A emergência e os poderes de emergência são interpretados no Direito
(normal) e, desse modo, normalizados e consolidados. A pergunta clássica sobre onde se deve
situar o estado de exceção é respondida, contrariando Carl Schmitt e Giorgio Agamben, da
seguinte forma: nem fora do Direito nem em um estado de suspensão entre Direito e não-
Direito, mas dentro do Direito, só que abaixo do nível da Constituição.


IV – SOBRE UMA TEORIA DE CONFLITOS INTEGRATIVOS E
DESINTEGRATIVOS


Existem, pois, bons motivos para não se fatigar em demasia a distinção entre estado de
normalidade e estado de exceção. Ao invés disso, escolho uma outra perspectiva e distinção,
para precisar a teoria do conflito embutida nas Constituições. Parto do princípio de que
Constituições estão propensas a cercar conflitos juridicamente. Isso soa como a concepção
de Carl Schmitt sobre a inimizade cultivada, mas tem um outro significado e uma outra
direção de ataque. Trata-se de integração, e não de autoridade e decisão.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 65
O seguinte ponto de vista é fundamentalmente diferente: baseia-se na hipótese de que se deve
estabelecer a diferença entre conflitos integrativos e desintegrativos. Assim sendo, da mesma
forma como procedo em meu livro, consagro-me à questão formulada por Tocqueville:
“Como uma sociedade fragmentada e radicalmente pluralizada consegue manter-se coesa
apesar de seus conflitos?”.
Gostaria de defender a seguinte tese: no suportar e padecer conflitos, que são conduzidos
conforme regras, forma-se o capital social = capital de integração de “sociedades dos
indivíduos” e minorias em si dilaceradas, o qual é imprescindível para a coexistência pacífica
em uma sociedade. De forma semelhante, a questão também é colocada por Albert Hirschman
(“De quanto senso comum necessita a sociedade?”), que a responde com a distinção entre
conflitos divisíveis e indivisíveis. O sociólogo Helmut Dubiel faz uma diferença entre
conflitos cultivados e não-cultivados. Outros falam de conflitos civilizados e não-civilizados.
A pergunta é sempre a mesma: como os conflitos inevitáveis podem ser reconhecidos em uma
sociedade e, ao mesmo tempo, ser limitados em sua dinâmica destrutiva?
Faço referência a essas reflexões e a essa pergunta. Penso que as regras de conflitos ou o
caráter divisível/cultivado/civilizado de conflitos podem ser vistas em três dimensões. Mais
um desdobramento dessa avaliação: para cada uma dessas dimensões, as Constituições
estabelecem diretrizes como ofertas de integração, que passaremos a mostrar abaixo.
(1) Objeto do conflito:
O objeto do conflito é aquilo em torno do que existe uma disputa. Deve-se fazer a seguinte
distinção: conflitos em que se “jogam todas as cartas” e conflitos que permitem acordos,
ajustes e soluções de negociações. De maneira típica, os primeiros são vinculados a
pretensões absolutas de verdade, ortodoxia, identidade e integridade. Toda sociedade conhece
essas situações de tudo ou nada. Em geral, elas levam a configurações de conflitos e
antagonismos com um potencial de dinâmica desintegrativa. Exemplos típicos:
– Aborto provocado: “Minha barriga me pertence” ou proteção absoluta à vida versus
proteção relativa à vida do nascituro por meio de um regime de indicações ou
referente ao primeiro trimestre de gestação;
– Escola: evolucionismo (Darwin) ou criacionismo versus uma concepção pluralista,
na qual todas as concepções têm seu lugar;
– Religião: pretensão de uma única religião libertadora como representante exclusiva
versus coexistência pacífica com outras religiões. O termo-chave atual é
fundamentalismo;
66 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
– Política: exigências regionais de autonomia política ou étnico-cultural com
tendência à secessão.
Constituições democráticas admitem pretensões de absoluteza, embora não defendam
nenhuma verdade como pública ou universalmente vinculatória, optando por dela fazer um
assunto privado. Resultado: Os direitos e as liberdades são sempre restritos por meio dos
direitos dos outros (segundo o modelo liberal de direitos fundamentais!) ou por meio de
pretensões da comunidade (segundo o modelo social de direitos fundamentais!).
Até direitos fundamentais com excessiva “tendência interna absolutista” – tais como a
liberdade de consciência ou a garantia de propriedade – encontram seus limites na
Constituição:
– A garantia de propriedade é sobreposta pela obrigatoriedade social da propriedade
privada.
– A liberdade de consciência não significa que decisões de consciência seja um
assunto puramente subjetivo. Quem se apóia em sua consciência tem de – visando ao
controle judicial – plausibilizar a decisão como “algo sério” e como situação de
dilema. Um benefício geral da consciência não é reconhecido.
– O próprio direito dos pais não vale como o direito absoluto de se dispor sobre os
filhos; na educação, sobrepõe-se a esse direito a função pública de custódia e, na
escola, uma pretensão pública de organização.
(2) Métodos de conflito:
Os métodos de conflito dizem respeito à maneira como se devem impor as exigências. Devese
distinguir entre métodos que “jogam todas as cartas” e os métodos limitados a exigências
civis reconhecedoras dos direitos iguais dos contraentes. Ali, onde todos os meios estiverem
corretos, não poderão surgir efeitos integrativos. Motivo: quem não estiver pronto para a
moderação abandona o nível horizontal da sociedade civil e arvora-se uma prerrogativa de
dispor, a seu bel-prazer, da integridade física e psíquica do seu oponente. Em relação a isso,
Hobbes falava do ius ad omnium. Constituições não permitem um “direito a tudo” dessa
natureza.
A violência contra pessoas e coisas = criminalidade não goza de proteção constitucional.
A obediência civil é um casal instrutivo especial. Quem pratica a obediência civil não está
exercendo um direito nem usufruindo um privilégio, mas protestando, de forma especialmente
dramática, por meio da ruptura consciente de normas, e terá de levar sanções em
consideração, em virtude dessa forma de protesto.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 67
Por conseguinte, a Constituição garante a todos um igual direito ao conflito. Consiste na
combinação de liberdade e igualdade, que é sobreposta por poderes de intervenção e deveres
de proteção:
– No caso de passeatas, não existe uma simetria entre passeata a favor e passeata
contrária. Deve-se cuidar, antes de tudo, de proteger os manifestantes. Aquele que
tencionar impedir uma passeata alheia que não vê com bons olhos será considerado,
conforme as normas da ordem pública, um perturbador da ordem. Desse modo, pode
acontecer que se ofereça proteção a neonazistas, diante de seus críticos, em função do
direito de reunião.
– A proibição de violência é imposta de forma relativamente estrita, sobretudo pelo
Direito Penal. Não existe violência boa e violência má.
– Ao se fazer uso da liberdade de opinião, deve-se atentar para o fato de que precisa
ser mantida, por exemplo, a salvaguarda da honra e da proteção à infância e à
adolescência, ou seja, não existe direito de ofensa ou difamação. A liberdade de
opinião não pode ter prioridade perante a integridade pessoal. No Direito
Constitucional alemão, isso é chamado de Schmähkritik (crítica degradante).
(3) Proporção do conflito:
A proporção do conflito diz respeito ao conceito que os contraentes fazem entre si. Esse
conceito se manifesta implicitamente nos métodos de conflito: a questão que aqui nos
interessa é saber se o outro se tornará “inimigo” ou se permanecerá “sob o signo da
semelhança” – de acordo com o modelo da concorrência, mas não com o modelo da guerra
civil. Declarações de hostilidade têm um efeito desintegrativo por deixarem o nível horizontal
da sociedade civil e conduzirem para a heterogenização substancial do outro. Esta gera, quase
forçosamente, uma inferiorização normativa do outro enquanto subpessoa. O inimigo torna-se
“subpessoa” que não tem participação nenhuma na minha existência.
O historiador francês Marcel Gauchet desenvolveu a seguinte tese: quanto mais antagônico o
conflito, com maior nitidez posso me reconhecer no outro – uma inversão radical da análise
marxista de classes e revolução. Se mantivermos distanciamento dessa ontologização do
conflito, o cerne da tese de Gauchet pode ser salvo e atrelado às ofertas de conflito das
Constituições. Ademais, do ponto de vista empírico, pode-se afirmar o seguinte contra
Gauchet: nem os conflitos de classe radicalizados ao extremo, nem os antagonismos
fundamentalistas levam a um melhor reconhecimento do eu no outro. Apenas o conflito
contido e regulado permite reconhecer a si mesmo no outro. Uma Constituição não pode
garantir isso, mas pode oferecê-lo. Fá-lo-á, caso mantenha distanciamento de configurações
de guerra civil e declarações de hostilidade e se consagre ao modelo de concorrência e
competitividade. Na Alemanha, falar de inimigos da Constituição constitui, desde os anos
setenta, um pecado original. Um conceito que a Lei Fundamental (N. do trad.: Grundgesetz,
como é chamada a Constituição da República Federal da Alemanha), prudentemente, não
conhece. Na esteira da revolta estudantil e, mais tarde, do “Outono Alemão” (N. do trad.: v.
grupo RAF, Fração do Exército Vermelho) nos anos setenta, como reação à primeira onda de
terrorismo promovida na República Federal da Alemanha, a campanha política acarretou
declarações de descrédito e proibições de exercício profissional contra inimigos
constitucionais. Hoje em dia, isso já pode ser visto – não apenas na esquerda – de forma mais
crítica.
68 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
As dimensões aqui apresentadas podem ser banalizadas como visão liberal de um mercado de
opiniões ou mais ainda como concepção lírica do conflito em sociedades modernas. É claro
que isso também pode ser visto com menos quietismo. Naturalmente, conflitos não podem
transcorrer de acordo com regras. Nem a teoria, nem a Constituição podem excluir tais
controvérsias. Com a concepção aqui defendida, apenas se quer afirmar que os conflitos com
forma violenta ou os conflitos fundamentalistas “levados a cabo” com todas as conseqüências
não têm, costumeiramente, um efeito integrativo, pois rompem o tecido de uma sociedade.
Também se pode dizer algo mais: nem todas as dimensões são igualmente importantes para a
integração. A retórica do inimigo pode até levar a um embrutecimento semântico da língua,
mas também pode vir a não ter nenhuma conseqüência, caso o oponente não seja combatido
como inimigo com todos os meios. Pretensões absolutas também podem ser manifestadas,
sem precisar ter, forçosamente, um efeito desintegrativo, caso os requerentes da pretensão, no
intuito de imporem suas reivindicações, chegarem a algum acordo. Com isso, os métodos de
conflito estão, portanto, no centro. E aqui se encontra, em especial, a violência. Uma
Constituição que queira ser entendida como oferta de como se podem solucionar conflitos de
forma integrativa não pode, portanto, fazer quaisquer cortes na renúncia à violência no seio da
sociedade.


V – O TERRORISMO E A GRAMÁTICA DA LIBERDADE E DA SEGURANÇA


Sob um pretexto atual, em minhas considerações finais, gostaria de discutir algumas emendas
à gramática da Constituição sob a pressão do terrorismo internacional. O ponto de partida é a
combinação do questionamento feito por Hannah Arendt sobre a viabilização de liberdade
com o questionamento de Hobbes sobre a garantia da segurança. Constituições modernas
respondem aos dois questionamentos. Seguem, porém, regras contrárias: liberdade enquanto
direito, segurança enquanto valor.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 69
A partir da perspectiva de Arendt, a liberdade está em perigo quando os cidadãos abandonam
a coletividade ou quando os responsáveis pela soberania excedem os limites do Estado de
Direito asseguradores de liberdade. Há áreas de salvaguarda dos direitos fundamentais
claramente delimitadas e princípios calcados no Estado de Direito que se encontram a serviço
da liberdade pública. Eles deverão coibir o “medo no Estado de Direito” – o medo de
reivindicar publicamente a liberdade.
Hodiernamente, estamos vendo que a liberdade também é ameaçada por meio de eventos
catastróficos que se abatem – como atentados terroristas – sobre o nosso quotidiano. Não
obstante, também vemos isso ocorrer por meio de reações pânicas por parte das autoridades
soberanas sob as vestes militantes da guerra contra o terrorismo. Ambas as coisas, tanto a
erosão do Estado de Direito quanto a reação excessiva à catástrofe, abalam a segurança
cognitiva. Segurança cognitiva significa mais que uma vaga sensação de segurança. Significa
que atores individuais entendem suas opções e suas margens de ação como razoavelmente
protegidas ou asseguradas e, por esse motivo, podem partir do princípio – com justeza ou não
– de que o recurso às liberdades, costumeiramente, não gera nenhum risco imprevisível. A
segurança cognitiva conta com uma ajuda prévia principalmente daqueles dois princípios do
Estado de Direito que deverão desenhar os contornos do horizonte de expectativas dos
cidadãos: determinação, clareza normativa e tutela dos direitos (fundamentais) eficaz. Nesse
sentido, a segurança cognitiva funciona como uma condição necessária da liberdade.
Inversamente, a insegurança cognitiva produz um chilling effect junto aos cidadãos e às
cidadãs, que pode ser identificado, dentre outras coisas, por meio de sua pouca disposição
para fazer uso de seus direitos de liberdade.
Como se pode fazer emendas à gramática constitucional da segurança?
Primeiro passo: os responsáveis pelas decisões políticas, em especial os administradores da
“segurança interna”, reagem a atentados e a ataques, procedendo a uma mudança de pista no
tocante aos princípios centrais de liberdade/segurança e à oposição entre estado de
normalidade legal e estado de exceção extralegal na retórica política e com os instrumentos do
Direito. Principalmente no caso de violências que representam uma grande ameaça e muito
perigo, paulatinamente eles se deixam levar de volta à normalidade e à rotina, mediante uma
apreciação objetiva dos perigos iminentes e uma estimativa cuidadosa das medidas
preventivas existentes, para passarem então a um acionismo simbólico motivado por táticas
eleitorais e estratégias político-partidárias. Este acionismo é textualizado pela legislação
simbólica que persegue a meta de gerar na percepção pública “a impressão tranqüilizadora de
um legislador atento e decidido”.
Segundo passo: acompanham o acionismo simbólico um discurso de oferta excessiva de
segurança, normalmente tingido com as cores político-partidárias, e uma retórica legislatória
da militância incitada por ele. Isso significa: os produtos do legislador – primeiramente as leis
que têm como meta a segurança, em seguida, todas as leis possíveis – não devem apenas
servir para regulamentar por meio de proibições ou ordens; elas também devem mostrar
claramente o que se pensa e devem combater. As leis devem assumir a luta contra tudo aquilo
que possa ser uma ameaça: “crime organizado”, lavagem de dinheiro e narcotráfico,
sonegação fiscal, abuso de asilo político e trabalho clandestino, bem como, pois não podemos
esquecer, o terrorismo internacional.
70 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
O direito ao combate segue, como foi descrito acima, a lógica de um estado de exceção
consolidado. Quanto mais segurança se prometer e quanto mais leis forem adaptadas para o
combate, com mais amplidão a prevenção de perigos será antecipada e com maior alcance
será distribuída. Mediante poderes de intervenção hiperpreventivos, o poder do Estado e, de
forma típica, a polícia controlam a prevenção de perigos para registrar todos os riscos
imagináveis contra a segurança. Paralelamente, o direito ao combate ganha destaque em ovas
normas jurídico-penais e em disposições penais agravadas ou ampliadas que também
promovem um deslocamento da punibilidade para a frente. Em nome da “nova prevenção”, os
direitos fundamentais são colocados diante de uma primazia do Executivo “quase
incondicional”.
Terceiro passo: sob o signo do “direito fundamental à segurança” assim construído, é
desacreditada a função delimitadora dos direitos de liberdade. A situação-limite ou de
exceção da legítima defesa ou do estado de emergência policial é colocada de forma
permanente. No caminho que leva à nova prevenção, inspirada principalmente pelo “crime
organizado” e pelo terrorismo, são destruídas as fronteiras entre polícia e força militar, entre
segurança interna (prevenção de perigos) e segurança externa (defesa), entre Direito Penal e
Direito de Guerra, e vão-se vislumbrando os contornos do Estado da prevenção e da
segurança.
Quarto passo: os destinatários da política de prevenção de perigos ou riscos, com suas
intenções de cidadãos ativos, estão vivenciando a mudança da antiga para a nova forma de
prevenção como uma perda de segurança cognitiva por meio da vigilância e do controle
soberanos. É claro que o discurso político da segurança contém a mensagem de que a
segurança cognitiva seria substituída por uma segurança existencial, uma segurança
generalizada para a existência. A partir do simbolismo não-transparente do direito ao
combate, os seus destinatários depreendem, de maneira cândida, uma “pretensão de proteção
diante dos riscos de vida gerais”. Na sombra do acontecimento catastrófico, o “estado de
exceção normalizado” faz surgir, junto ao público de cidadãos, uma mentalidade que lhe é
muito favorável e lhe cai muito bem: sensações difusas de ameaça e eventuais temores de
criminalidade ganham forma e geram uma carência de “certeza existencial”, favorecendo um
quietismo que não é molestado por pretensões de liberdade e que prontamente faz uso da
promessa de segurança existencial.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA 71
Quinto passo: as mudanças de pista retórica e política da liberdade para a segurança alteram o
status normativo da segurança e, conseqüentemente, a gramática das Constituições. Ela se
manifesta em uma nova simetria de liberdade e segurança. Tal simetria se exprime por meio
da hipótese de que liberdade e segurança estariam uma ao lado da outra como princípios
centrais e que seriam conjecturáveis entre si. Conjectura sugere que a liberdade e a segurança,
enquanto princípios de normalidade baseada no Estado de Direito e ocupando um mesmo
patamar, seriam compatíveis entre si, sem nenhum problema, e seguiriam uma lógica
funcional. Não se poderia falar, portanto, de uma revalorização da segurança.
Como se dá a simetria entre liberdade e segurança?
Contra a banalização dogmática da ascensão incessante da segurança cognitiva para a
existencial e contra seu duplo mascaramento enquanto princípio ainda cognitivo e de igual
patamar, pode-se chamar a atenção, primeiramente, para algumas diferenças na situação
inicial em que se encontravam liberdade e segurança, bem como para a relação específica
existente entre elas:
– A igual liberdade (igualdade de direitos) pressupõe, originalmente, um alto nível de
exigências. Está relacionada à disposição para ações públicas e para a participação em
negócios comuns dentro de uma sociedade, ou seja: política. Em sua ligação
normativa com a igualdade, a liberdade, que encontra nos direitos dos outros um
limite – admitamos: nem sempre claro e quase sempre controverso – a ser
concretizado em cada caso individual, traz em si, de certo modo, sua moderação. O
fato de as experiências com o princípio da proporcionalidade e com o método da
concordância prática no caso de colisões entre direitos fundamentais mostrarem que se
fala não de espaços de liberdade claramente delimitados, mas sim abertos a
interpretações, não muda em nada o fato de a liberdade ser voltada à atividade social
e construída com limitações internas.
– Em ambos os aspectos, a situação é outra no tocante à segurança. Enquanto a
gramática constitucional traduz a liberdade em direitos público-subjetivos,
classificando-a a responsáveis individuais que deverão ser autorizados a agir, a
segurança surge como um bem público. A ordem jurídica a atribui ao âmbito de
atuação de instituições e autoridades públicas, conferidas a estas, por meio das normas
policiais e penais correspondentes, a autorização para intervir em áreas de ações
sociais, bem como na esfera social e privada dos cidadãos e das cidadãs.
Diferentemente do sistema da liberdade, a segurança desconhece, ademais, uma
restrição imanente. Pelo contrário: voltada para a satisfação de estados e de
necessidades, a segurança é, em comparação, internamente desmedida.
Primeiramente, a segurança depende da possibilidade fáctica de ser produzida. A isso
se vêm acrescer cálculos discricionários sobre o grau de imprescindibilidade e
efetividade.
72 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA ESTRANGEIRA
– Mais uma diferença prenhe de conseqüências negativas revela-se ao se fazer uma
relação entre liberdade e segurança. A liberdade necessita, como mostramos acima, de
uma quantidade mínima de segurança cognitiva – normalmente garantida pelo Estado
– como condição fáctica de sua possibilidade. A segurança cognitiva ganha seu
sentido por meio da liberdade. Nessa medida, a segurança, originalmente, está a
serviço da liberdade. Pois, sem segurança cognitiva, a liberdade seria pouco mais que
uma promessa vazia e dificilmente concitaria os direitos de liberdade ao uso. Com
relação à segurança, a situação já é outra. Ela consegue se safar sem a liberdade e não
precisa, em todo caso, de espaços de liberdade para sua legitimação.
– Liberdade e segurança somente surgem em um patamar normativamente igual,
quando ambas são valoradas, são traduzidas em valores. Para uma operação desse
calibre, existem diferentes caminhos. Primeiramente, direitos de liberdade podem ser
traduzidos em deveres de proteção e “coletivizados”. Por outro lado, segurança pode
ser operacionalizada em deveres de segurança individualmente imputáveis e, com
isso, individualizados. Em terceiro lugar, enquanto bem coletivo público e tarefa
estatal, a segurança pode ser reconstruída e transformada em um dever de proteção
estatal correspondente. Não obstante, um dever de proteção desse tipo, ao contrário
dos direitos individuais de liberdade, precisa temer toda e qualquer ponderação,
enquanto um estado de segurança não estiver construído. E quando seria o caso?
Conclui-se, daí, que não poderá ocorrer, sem maiores problemas, uma confrontação e uma
ponderação entre liberdade e segurança. Normalmente, sua ponderação pressupõe uma dupla
mudança de perspectiva em relação ao cidadão enquanto perturbador e ao Estado enquanto
“realizador de direitos fundamentais”, bem como uma operação calcada na teoria e nos
métodos dos direitos fundamentais, que tem muitas conseqüências: o sistema das liberdades é
transformado por meio de uma tarefa de segurança do Estado. Ao mesmo tempo, confere-se
aos detentores dos direitos fundamentais um fardo de segurança universal a ser carregado
individualmente.
No final, a Constituição da liberdade torna-se uma Constituição da segurança. Ou seja: em
caso de dúvida, os direitos de liberdade recuam para trás da tarefa de segurança do Estado.
Eles estão sob a primazia da segurança. Ademais: todos nos tornaremos mercenários na
guerra contra o terrorismo. Nossa contribuição é a renúncia à liberdade, uma renúncia que não
é adquirida com nenhum ganho de segurança real. Parece-me ser, permitam-me, um preço
demasiadamente alto.

Fonte: Observatório da jurisdição constitucional - IDP

Nenhum comentário: