Artigos, entrevistas, notícias, vídeos, documentários, legislação.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

DOUTRINA BRASILEIRA: Vale quanto pode: a força jurídica da Constituição como - Paulo Gustavo Gonet Branco

Paulo Gustavo Gonet Branco
Professor do IDP, Membro do MPF, Doutorando em Direito – UnB.


A assertiva de que a Constituição tem valor de norma – e de norma suprema do ordenamento
jurídico –, se hoje passa por um truísmo, exprime, na realidade, um produto do pensamento
constitucionalista, que culmina uma sucessão de passos de registros de inteligência sobre o
tema, muitas vezes desencontrados.
A História, neste ponto, nos aponta duas tendências básicas a observar: aquela da Europa
continental e a dos Estados Unidos.
O reconhecimento do valor jurídico das constituições na Europa continental tardou mais do
que na América, em virtude de peculiaridades circunstanciais das duas regiões.
NA EUROPA
Na Europa, os movimentos liberais a partir do século XVIII enfatizaram o princípio da
supremacia da lei e do Parlamento, o que terminou por deixar ensombrecido o prestígio da
Constituição como norma vinculante.
O fenômeno será melhor compreendido levando-se em conta aspectos do desenvolvimento
das idéias políticas e jurídicas, de que é tributária a própria noção de Constituição, e de onde
provêm as idéias nucleares do constitucionalismo atual.
Um nome importante para nos situarmos neste quadro é o de Jean Bodin (1529-1596). Em
1576, Bodin publica, em Paris, os Seis livros da República e teoriza sobre o poder absoluto do
soberano – o rei. Para o autor, esse poder é perpétuo e absoluto. É perpétuo, porque não pode
ser revogado. E não o pode ser, porque não deriva de um outro poder, não é fruto de uma
delegação, mas é originário 1
. O poder é absoluto, afinal, no sentido de não estar submetido
nem a controle e nem a contrapeso por parte de outros poderes.
1Cf., a propósito, FIORAVANTI, Maurizio. Constitucion – Da la Antigüedad a Nuestros Días. Madri: Trotta,
2001. p. 73 e ss.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 21
O poder absoluto não é tido como poder ilimitado 2. Ligado à tradição medieval, Bodin
sustenta a existência de pelo menos dois limites. O primeiro, ligado à distinção entre rei e a
coroa, que impede o rei de alterar as leis de sucessão e de alienar os bens que formam parte da
Fazenda Pública. O segundo, tendo que ver com a impossibilidade de o monarca dispor dos
bens que pertencem aos súditos, para não se confundir com um tirano.
Bodin sustenta que o poder é absoluto, porque cabe ao rei dispor de assuntos da soberania,
como legislar, declarar a guerra e firmar a paz, decidir em última instância as controvérsias
entre os súditos, nomear magistrados e tributar 3
. O monarca governa com o auxílio de
assembléias e de magistrados, mas a Constituição não é mista, já que o poder último está nas
mãos apenas do monarca; não resulta de uma composição de segmentos específicos da
sociedade. O núcleo duro da soberania não está disponível para os súditos: acha-se subtraído
das forças políticas ordinárias. E aqui já se encontra a “primeira grande idéia que está na
origem da constituição dos modernos” 4.
Novo momento relevante é protagonizado por Hobbes (1588-1679), que escreve o Leviatã,
em 1651, logo depois dos acontecimentos ingleses de 1649 (condenação à morte do rei,
extinção da Câmara dos Lordes, surgimento da República).
Hobbes deplora a situação, que decorre da luta de facções na disputa pelo poder. Hobbes
entende que o soberano deve ser individualizado de modo claro para se prevenir a dissolução
do Estado. O soberano disporia dos poderes básicos, que coincidem com os indicados por
Bodin. A associação política necessitaria de uma lei fundamental, que cuidasse de
individualizar o soberano e de indicar os seus poderes irrevogáveis. Sem essa lei fundamental,
o Estado não subsistiria. Essa Constituição, pensada por Hobbes, já apresenta traços que a
assemelham à Constituição dos modernos.
Para Hobbes, o poder tem uma origem. Os indivíduos, para fugir do estado de natureza,
decidem superá-lo. A sua doutrina se afasta do pensamento de Bodin neste passo e assume
feitio contratualista. Os indivíduos, para salvar as suas vidas e preservar os seus bens,
instituiriam um poder soberano comum, que deveria proteger as suas vidas e também garantir
que se possa gozar da propriedade, algo de impensável no estado de natureza 5
.
2FIORAVANTI, ob. cit., p. 74-75.
3FIORAVANTI, ob. cit., p. 75.
4FIORAVANTI, ob. cit., p. 77.
5FIORAVANTI, ob. cit., p. 81.
22 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
Na Inglaterra, um outro movimento, alguns anos depois, deixa a sua marca na História.
Em 1660, restaura-se a monarquia e, em 1689, os poderes do monarca se vêem limitados pela
Revolução Gloriosa, de que deriva a adoção do Bill of Rights no mesmo ano. O Parlamento
marca o caminho para a posição de supremacia, em contrapeso à Coroa. Reafirma-se a
titularidade do rei no Executivo, mas o Bill of Rights restringe os poderes reais na medida em
que recusa ao monarca legislar autonomamente, bem como lhe é recusado o poder de impor
tributos ou convocar e manter o exército sem a autorização do Parlamento. O princípio da
soberania do Parlamento assinala para este ramo do governo “o direito de fazer ou desfazer
qualquer lei que seja; e, mais, [significa] que nenhuma pessoa ou entidade goza de
reconhecimento legal para superar ou deixar de lado a legislação do parlamento” 6
.
Essa forma de governo moderado teve em Locke (1632-1704) atento observador, que, em
1690, publica o seu Segundo Tratado do Governo Civil.
Para Locke, no estado de natureza, os indivíduos já eram capazes de instituir a propriedade,
segundo os ditames da lei natural, mas, para preservá-la, não podem prescindir de estabelecer
uma sociedade política. Esta tem em mira “o desfrute da propriedade em paz e segurança” 7.
O poder, então, há de ser exercido para o bem geral da comunidade, para garantir condições
propícias à paz e ao gozo da propriedade 8.
Na sociedade política, tornam-se possíveis instituições incogitáveis no estado de natureza, tal
como o legislador razoável, o juiz imparcial e o Poder Executivo, garantidor, na prática, das
decisões tomadas 9
.
Segundo Locke, o legislador não gera direitos, mas aperfeiçoa a sua tutela, o que pressupõe a
preexistência desses direitos. Daí que não pode atuar de modo arbitrário sobre a vida e a
propriedade dos indivíduos.
6A fórmula é de Dicey, no original, recolhido por Jutta Limbach (The Concept of the Supremacy of the
Constitution. The Modern Law Review, Londres, v. 64, n. 1, p. 1, jan. 2001): “[The Parliament] has, under the
English constitution, the right to make or unmake any law whatever; and further, that no person or body is
recognised by the law of England as having a right to override or set aside the legislation of Parliament”.
7LOCKE. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 98 (Capítulo XI, n. 134). Em
outra passagem (Capítulo IX, n. 124, p. 92), lê-se que “o maior e principal objetivo de os homens se reunirem em
comunidades, aceitando um governo comum, é a preservação da propriedade”.
8Cf. LOCKE, ob. cit., p. 101 (Capítulo XI, n. 136):
“Para evitar percalços que perturbam os homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que a
somatória de suas forças reunidas lhes garanta e assegure a propriedade, e para que desfrutem de leis fixas que a
limitem, que esclareçam a todos o que lhes pertence. É essa a finalidade de os homens transferirem todo poder
que possuem naturalmente à sociedade à qual se filiam [...]; caso contrário, a paz, a propriedade e a tranqüilidade
continuariam na mesma incerteza em que se encontravam no estado de natureza.”
9A propósito, o Capítulo IX do Segundo tratado sobre o governo, p. 92-93.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 23
Locke se volta contra o perigo da assimilação pela Assembléia Legislativa dos Poderes
Executivos, bem como contra os riscos da incorporação dos poderes de legislar pelo
Executivo; por isso, opõe-se à monarquia absoluta.
“A verdadeira relevância de Locke – sustenta Maurizio Fioravanti – está em ter sido ele o
pioneiro em formular, de modo claro e firme, no âmbito da constituição dos modernos, a
fundamental distinção entre poder absoluto e poder moderado. O primeiro é aquele em que
um único sujeito, seja o rei, seja a Assembléia, tem os Poderes Legislativo e Executivo; já no
segundo, os dois poderes são distintos e pertencem a dois sujeitos distintos.” 10
O próprio da
Constituição é estabelecer a relação adequada entre Legislativo e Executivo, prevenindo a
formação de um poder absoluto, capaz de pôr em risco os direitos dos indivíduos.
Como também repara Fioravanti, “muito dificilmente se pode deduzir de tudo isso a
existência de uma opinião de Locke a favor da soberania do povo” 11 . Com efeito, para
Locke, cabe ao povo “o poder supremo para afastar ou modificar o Legislativo, se apurar que
age contra a intenção do encargo que lhe confiaram. [...] Podemos, pois, afirmar que a
comunidade, nesse aspecto, é ela mesma o poder supremo, mas não considerada sob qualquer
forma de governo, uma vez que este poder do povo só se manifesta quando se dissolve o
governo” 12
.
Na era moderna, deve-se a Locke a concepção da fórmula de divisão dos poderes como meio
de proteção dos valores que a sociedade política está vocacionada a buscar. Locke não fala de
um Poder Judiciário, mas do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Federativo.
Ao Executivo caberia “a execução das leis da sociedade dentro dos seus limites com relação a
todos que a ela pertencem”, e, ao Federativo, “a gestão da segurança e do interesse da
comunidade fora dela” no plano do concerto das nações. Locke não vê empecilho em reunir
em mesmas mãos esses dois poderes 13
. Como se vê, o Executivo, aqui, engloba também o
poder de julgar.
A separação funcional ocorre no plano da titularidade do exercício do Poder Legislativo e do
Executivo, uma vez que “poderia ser tentação excessiva para a fraqueza humana a
possibilidade de tomar conta do poder, de modo que os mesmos que têm a missão de elaborar
as leis também tenham nas mãos o poder de executá-las, isentando-se de obediência às leis
que fazem, e com a possibilidade de amoldar a lei, não só na sua elaboração como na sua
execução, a favor de si mesmos” 14
.
10FIORAVANTI, ob. cit., p. 93.
11FIORAVANTI, ob. cit., p. 94.
12LOCKE, ob. cit., p. 109 (Capítulo XIII, item 149).
13LOCKE, ob. cit., p. 107 (Capítulo XII).
14LOCKE, ob. cit., p. 106 (Capítulo XII).
24 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
Apesar dessa distinção, a teoria de Locke não preconiza uma igualdade hierárquica entre os
poderes. Embora conceda que a supremacia última pertence ao povo, argúi que, quando este
se reúne sob um governo, é ao Legislativo que cabe o poder máximo, porque, “o que deve
fazer leis para os demais, deve necessariamente ser-lhe superior” 15
.
Durante o século XVIII, difunde-se a idéia de que a Constituição inglesa representa o ideal de
configuração política da sociedade, com o seu sistema de convivência entre os Poderes
Legislativo e Executivo, característico da fórmula do king in Parliament. O Parlamento
legisla, mas tem presente a possibilidade de o rei vetar o diploma. Por outro lado, o rei atua,
executa, mas sabendo que pouco pode sem a prévia autorização de gastos, dada pelo
Parlamento.
Essa arquitetura ganha divulgação, e se refina, com a obra de Montesquieu (1689-1755),
aparecida em 1748, O espírito das leis. O regime político moderado ganha a predileção de
Montesquieu, que o define como aquele cuja constituição é capaz de manter poderes
diferenciados e, ao mesmo tempo, equilibrados. Somente sob um regime moderado haveria a
liberdade política 16
.
Montesquieu apura o conceito de liberdade política, estremando-o da acepção de mera
faculdade de se fazer o que se quer. Montesquieu define a liberdade como o poder de fazer
tudo o que se deve querer, tudo o que as leis permitem, e em não ser constrangido a fazer o
que não se deve desejar fazer 17
.
Essa liberdade necessita de ser assegurada por uma constituição que se acautele contra o
abuso do poder, já que “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde
encontra limites” 18
. E o meio apto para se precatar contra o desmando seria a correta
“disposição das coisas”, propícia a que “o poder freie o poder”. 19 Daí a separação entre os
poderes, para que um contenha o outro. Esses poderes são identificados como Legislativo,
Executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o Executivo das que dependem do
direito civil. Montesquieu diz: “Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro,
simplesmente o Poder Executivo do Estado”
20
.
A separação dos poderes tem por objetivo político reparti-los entre pessoas distintas, para, por
esse meio, impedir a concentração, adversária potencial da liberdade. A teoria se compreende
“segundo a moldura do conflito clássico entre liberdade e autoridade [...] método lucubrado
para a consecução de um fim maior: limitar o poder político” 21
.
15LOCKE, ob. cit., p. 110 (Capítulo XIII, n. 150).
16O espírito das leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p. 186 (Livro XI, Cap. 4).
17O espírito das leis, p. 186 (Livro XI, Cap. 3).
18O espírito das leis, Livro XI, Cap. 4.
19Id.
20O espírito das leis, Livro XI, Cap. VI.
21No comentário do Ministro Cezar Peluso em voto proferido na ADIn 3.367 (DJ 17.03.2006).
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 25
Dessa fonte espiritual decorre a aplicação posterior do princípio da divisão de tarefas no
Estado, entregue a pessoas e órgãos diferentes como medida de proteção da liberdade 22
.
O constitucionalismo, até aqui, constrangia os poderes públicos constituídos, e, por igual,
inibia o povo.
Rousseau (1712-1778) extrai desdobramentos revolucionários da idéia de que a soberania
nasce da decisão dos indivíduos. Os seus escritos chegaram a ser queimados em público, tal a
reação que motivaram. No Contrato social, que publica em 1762, Rousseau sustenta que o
poder soberano pertence diretamente ao povo. Pelo pacto social, os indivíduos se transformam
em corpo político, renunciando à liberdade natural, mas forjando a liberdade civil. Esta
consistiria “na garantia de estarem [os indivíduos] governados por uma lei genérica, fruto da
totalidade do corpo soberano” 23
.
Rousseau desconfia dos governos e propõe que sejam limitados, para prevenir que se
desvirtuem pela busca de fins particulares, apartando-se dos objetivos gerais que lhes seriam
típicos. Propugna por que o povo mantenha sempre a possibilidade de retomar o que havia
delegado aos governantes. Para Rousseau, “não existe nem pode existir nenhum tipo de lei
fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem sequer o contrato social” 24
. A
Constituição não tem função de limite ou de garantia. Apenas cuida dos poderes instituídos,
não podendo restringir a expressão da vontade do povo soberano.
Esse é o quadro teórico que as revoluções do último quartel do século XVIII vão surpreender.
Opunham-se uma linha constitucionalista e uma visão radical da soberania popular.
Na Europa, a Revolução Francesa havia assumido a tarefa de superar todo o regime político e
social do Antigo Regime. O povo não poderia ser apenas o autor da Constituição, mas tinha
que ser o soberano, sem se deixar travar pela Constituição. A visão radical da soberania
popular ganha espaço.
De toda forma, punha-se o problema de como o povo se faria ouvir, de como a sua existência
política se expressaria na sociedade.
22Nesse sentido, LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1979. p. 55. Na mesma
página, o autor resume a idéia na frase: “A liberdade é o desígnio ideológico da teoria da separação dos
poderes”.
23FIORAVANTI, ob. cit., p. 83.
24Contrato social, I, Cap. 7.
26 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
O exercício da força soberana do povo é então reconhecido aos seus representantes no
Legislativo. Sendo a expressão do povo soberano, o Parlamento não poderia ser limitado por
nenhuma regra, nem mesmo pela Constituição.
O Parlamento passa a ser a sede de defesa dos interesses do povo e esses interesses tinham por
vértice os valores da liberdade individual e da propriedade, que não encontravam amparo
adequado sob o regime monárquico absolutista.
Proclamava-se – é certo – que os valores da liberdade somente seriam eficazmente garantidos
se houvesse a consagração da separação de poderes, de tal sorte que uma esfera do poder
poderia frear os excessos de outra, obviando situação em que um mesmo órgão pudesse
elaborar normas gerais e implementá-las na prática.
A Constituição de 1791, embora abrigasse norma decretando que não haveria Constituição
sem separação de poderes, construiu um sistema fundado na supremacia do Legislativo. O rei
ainda dispunha do poder de veto, que era, entretanto, apenas suspensivo e aposto como
resultado da vontade, não de representante do povo, mas de representante da unidade nacional
25. O governo era desempenhado pelo Legislativo, restando ao Executivo a função de dispor
dos meios aptos para dar aplicação à lei 26. A primazia do Legislativo é também a nota da
Constituição de 1795.
Não deve causar espanto que fosse assim. A Revolução Francesa não vinha apenas restringir
excessos de um regime anterior; propunha-se a suplantá-lo, defrontando-se, porém, com
resistência pertinaz. Depois da Revolução Francesa, as monarquias absolutas, forçadas,
transformaram-se em monarquias constitucionais, e o monarca passou a compartir o poder
com as novas forças sociais, e as desconfianças destas se dirigiam, sobretudo, ao rei. O
monarca era visto como o perigo mais próximo à nova ordem.
Os revolucionários, afirmando-se representantes do povo, instalaram-se nos Parlamentos e
sabiam que o Parlamento deveria ser fortalecido em face do rei. A vontade do Parlamento
tinha que prevalecer e ser preservada. Daí o enorme prestígio do Parlamento, com a sua
efetiva supremacia sobre os demais poderes.
O prestígio do Parlamento explica as características quase místicas reconhecidas à expressão
da sua vontade – a lei.
Consagrou-se a fórmula revolucionária de que a voz do Legislativo é a expressão da vontade
geral, na linha da doutrina de Rousseau, que punha em par a lei com a própria liberdade.
25FIORAVANTI, ob. cit., p. 115.
26Idem, ibidem.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 27
O direito público passa a conhecer uma noção radicalmente nova e que vinha bem ao feitio da
necessidade de se valorizar o Parlamento. Assentou-se, em harmonia com a idéia de lei como
expressão da vontade geral, a compreensão de que a vontade geral se expressa por meio do
corpo legislativo do Estado, lugar de representação da totalidade da cidadania 27
.
A lei, assim, se define e ganha a sua força tendo em vista a sua proveniência orgânica, mais
do que por seu conteúdo. A lei é comando obrigatório válido por ter sido adotada, de acordo
com o procedimento próprio, pelo órgão constitucionalmente competente para representar a
vontade dos cidadãos.
Não surpreendem as conseqüências daí advindas. O princípio da soberania da nação acaba por
se confundir com o princípio da soberania do Parlamento.
Observou-se 28 que o Parlamento passara a ser duplamente soberano. Era soberano perante
todas as autoridades do Estado, porque era a representação do povo. Tornava-se, também,
soberano perante o próprio corpo de cidadãos, uma vez que este somente podia expressar a
sua vontade por meio da assembléia dos seus deputados – particularidade em que a prática
revolucionária se distancia de Rousseau.
SUPREMACIA DO PARLAMENTO E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A supremacia do Parlamento não se concilia com a idéia de supremacia da Constituição, o
que decerto concorre para explicar o desinteresse dos revolucionários na Europa por
instrumentos destinados a resguardar a incolumidade da ordem constitucional.
Não havia meio institucional de defesa da Constituição apto para controlar o respeito efetivo
dos princípios dispostos na carta. A defesa da Constituição terminava por ser entregue, com
algumas palavras de grandiloqüência retórica, ao próprio povo 29
.
A falta de operatividade jurídica da Constituição se devia à sobrevalorização da supremacia
da lei e do Parlamento.
Essa concepção de supremacia incontrastável do Parlamento redunda num conceito débil do
valor da Constituição. A Constituição, neste contexto, não se encontra protegida contra o
Legislativo que, à época, se firmava como o poder nacional 30
.
27VALDÉS, Roberto Blanco. El valor de la Constitución. Madri, 1998. p. 252.
28VALDÉS, ob. cit., p. 257.
29A propósito, VALDÉS, ob. cit., p. 261. Veja-se o que dispunha a Constituição francesa de 1791, no seu Título
VII, art. 8º, § 4º: “A Assembléia Nacional constituinte confia o depósito [da Constituição] à fidelidade do corpo
legislativo, do rei e dos juízes, à vigilância dos pais de família, às esposas e às mães, ao apreço dos jovens
cidadãos, à coragem de todos os franceses”.
30VALDÉS, ob. cit., p. 262.
28 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
A supremacia do Parlamento tornava impensável um controle judiciário das leis. Além disso,
os revolucionários franceses devotavam especial desconfiança aos juízes, vistos como
adversários potenciais da Revolução. O Judiciário era tido como órgão destinado a realizar a
aplicação mecânica da lei, por meio de um silogismo, no qual a premissa maior era a lei, a
menor, os fatos, daí redundando uma conclusão única e inexorável – a decisão judicial.
A prática revolucionária concordava com Montesquieu, que reduzia o poder de julgar a
condição de “instrumento que pronuncia as palavras da lei” 31 . Dominava a concepção de que
“nenhum juiz tem o direito de interpretar a lei segundo a sua própria vontade”
32
.
O princípio da separação dos poderes atuava para constranger o poder de julgar a uma posição
de menor expressão. Era impensável que se postulasse perante uma corte de justiça a
efetividade de um cânone constitucional; ao juiz não cabia censurar um ato do Parlamento.
A subordinação do Judiciário ao Parlamento, do ponto de vista funcional, é notável. Uma
manifestação fundamental disso é a criação, na França, do instrumento do référé législatif, por
uma Lei de 1790, somente abolida em 1837 33
.
Por meio do référé législatif, remetia-se ao Legislativo a interpretação de um texto obscuro de
alguma lei. A Constituição de 1791, acolhendo o instituto, dispunha que, se uma interpretação
da lei fosse atacada por três vezes num Tribunal de Cassação, este deveria submetê-la ao
corpo legislativo, que emitiria um decreto declaratório da lei, vinculante para o Tribunal de
Cassação. Havia, portanto, uma interferência direta do Parlamento até no mais alto tribunal,
sob o pretexto de preservar a vontade do povo, como expressa por seus legítimos
representantes, os seus deputados. A função de interpretação da lei é, assim, vista como
consubstancial à função legislativa.
O controle judicial de constitucionalidade das leis seria, nessa conjuntura, tão teratológico que
nem sequer se estimou necessária a sua proibição específica, bastando a vedação genérica,
imposta em outros preceitos normativos e de constituições da época, a que o juiz deixasse, por
qualquer motivo, de conferir aplicação às leis 34
.
31O espírito das leis, Livro XI, Cap. VI.
32Cf. VALDÉS, ob. cit., p. 266 (citando deputado da época).
33A propósito, VALDÉS, ob. cit., p. 262 e ss.
34Assim, uma Lei de 16-24 de agosto de 1790 dispunha que “os tribunais não poderão tomar direta ou
indiretamente parte alguma no exercício do Poder Legislativo, nem impedir ou suspender a execução dos
decretos do corpo legislativo, sancionado pelo rei, sob pena de prevaricação”. Cf. VALDÉS, ob. cit., p. 276.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 29
A supremacia do Parlamento não era, portanto, passível de contraste. O que o Legislativo
decidia externava a vontade do povo e não tinha como ser censurado.
Supremacia do Parlamento e supremacia da lei eram aspectos de um mesmo fenômeno, hostil,
por si mesmo, à idéia de um instrumento normativo superior ao Parlamento e à lei.
Comprometia-se, assim, a noção de Constituição como instrumento com valor normativo
efetivo, capaz de estabelecer parâmetros para aferição da validade jurídica dos atos dos
Poderes Públicos. Tudo isso conduzia, também, a que tampouco se emprestasse maior
relevância ao problema da modificação da Constituição por via institucional.
A idéia de uma Constituição sem proteção efetiva, e, portanto, com valor jurídico de menor
tomo, perdurou por bom tempo na Europa continental. Ali, o problema da proteção da
Constituição, isto é, do seu valor jurídico, ficou em estado de latência até as crises do Estado
liberal do final do século XIX e no primeiro quartel do século XX 35
.
A queda, em sucessão, dos regimes monárquicos na Europa, coincidindo com a progressiva
adoção do parlamentarismo – em que é inerente a proximidade do Executivo ao Legislativo –,
enfraqueceu a idéia de que a proclamação da separação dos poderes seria meio suficiente para
a defesa das liberdades. Sentiu-se a necessidade de uma nova fórmula de proteção dos
indivíduos. Impunha-se a descoberta de novas fórmulas de controle do poder do Estado.
Instaurou-se, no período de entre-guerras, rico debate, dominado por Carl Schmitt e Hans
Kelsen, em torno dos instrumentos de proteção da Constituição. A discussão foi interrompida,
dramaticamente, com a II Guerra Mundial.
Terminado o conflito, a revelação dos horrores do totalitarismo reacendeu o ímpeto pela
busca de soluções de preservação da dignidade humana contra os abusos dos poderes estatais.
Os países que saíam do trauma dos regimes ditatoriais buscam proteger as declarações liberais
das suas constituições de modo eficaz. O Parlamento, que se revelou débil diante da escalada
de abusos contra os direitos humanos, perde a primazia de que desfrutou. A Justiça
Constitucional, em que se viam escassos motivos de perigo para a democracia, passa a ser o
instrumento de proteção da Constituição – que, agora, logra desfrutar de efetiva força de
norma superior do ordenamento jurídico, resguardada por mecanismo jurídico de censura dos
atos que a desrespeitem.
A Justiça constitucional se alastra pela Europa, na medida em que os seus países se
democratizam, e é acolhida em Portugal e na Espanha, nos anos 70. Com a queda do
comunismo, é igualmente consagrada nas antigas ditaduras do Leste Europeu.
35Cf. VALDÉS, ob. cit., p. 356.
30 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
Não se pode mais tolerar a produção de norma contrária à Constituição, porque isso seria
usurpar a competência do poder constituinte. Este, sim, passa a ser a voz primeira do povo,
condicionante das ações dos poderes por ele constituídos. A Constituição assume o seu valor
mais alto por sua origem – por ser o fruto do poder constituinte originário.
NOS ESTADOS UNIDOS
Do lado de cá do Atlântico, diferentemente, desde o início do século XIX, é reconhecido o
valor normativo da Constituição como documento máximo da ordem jurídica. Peculiaridades
históricas concorrem para esse fato.
Nos Estados Unidos, ao contrário do que acontecia na Europa na mesma época, não há
preocupação maior com o poder do Executivo. O Presidente da República é eleito pelo voto
popular. Não é o adversário temido como eram os monarcas do final do absolutismo. O perigo
que assusta, nos Estados Unidos, é justamente o da extensão desmesurada do Poder
Legislativo 36
. O caminho que os americanos buscam é o do equilíbrio dos poderes,
precavendo-se contra as ambições hegemônicas do Congresso
37
.
A desconfiança para com o Parlamento pode ser retraçada aos fatores desencadeadores da
independência americana. Leis britânicas das vésperas da independência, em especial no que
tange à taxação, provocaram a indignação dos colonos, que as viram como resultado de um
Parlamento corrompido, que se arrogara poder ilimitado. O Parlamento britânico se assomou
aos colonos como força hostil à liberdade. A nova nação deveria precaver-se contra a
legislatura propensa às medidas tirânicas 38
. Haveria de se construir um governo limitado.
Percebeu-se, enfim, que “a manutenção da liberdade não somente exige o estabelecimento de
garantias para a sociedade em face do Estado, como também a proteção das minorias em face
de um eventual abuso democrático” 39
.
36VALDÉS, ob. cit., p. 108.
37A propósito, as palavras de Jefferson, recolhidas por Madison no Federalista (n. 48): “173 déspotas serão tão
opressivos como um só. Não lutamos por um despotismo eletivo, mas por um governo baseado sobre princípios
livres”.
38A propósito, DIPPEL, Horst. Soberania popular e separação de poderes no constitucionalismo revolucionário
da França e dos Estados Unidos da América. Trad. Paulo Sávio Peixoto Maia. Brasília: Faculdade de Direito
(mimeo), p. 5: “‘Se não há nenhum limite para a Legislatura’, escreveu o Providence Gazette de 5 de agosto de
1786, ‘nós não somos mais um país livre, mas um país governado por uma oligarquia tirânica. [...] Um governo
puramente legislativo como o da Inglaterra, onde os representantes são legisladores absolutos, sem qualquer
sistema institucionalizado de controle, era considerado como um mero parlamentarismo despótico”.
39VALDÉS, ob. cit., p. 116/117.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 31
Na República americana, em que os dois poderes fundamentais do Estado procedem da
mesma fonte de legitimidade, o voto popular, abriu-se margem à discussão de outro problema,
que somente ocupará os europeus num posterior momento histórico – o da proteção das
minorias. Reparou-se que esse objetivo exigia que os limites dos poderes estivessem bem
delineados num documento vinculante, insuscetível de ser alterado pelas mesmas maiorias
contra as quais as limitações eram dispostas.
Tudo isso colaborou para que se encontrasse um valor jurídico único na Constituição, como
instrumento de submissão dos poderes a limites. Tornou-se viável a idéia da supremacia da
Constituição sobre as leis.
A necessidade, ainda, de se seguir um procedimento mais dificultoso e solene de mudança da
Constituição servia para acentuar-lhe a origem superior no poder constituinte originário – ele
próprio, o único capaz de fixar como o texto poderia ser alterado. A supremacia da
Constituição também ganhava com a rigidez da carta.
A supremacia da Constituição, afinal, exprimia a conseqüência inelutável da sua
superioridade formal, resultado da primazia do Poder Constituinte Originário sobre os
Poderes por ele constituídos 40
.
A concepção da Constituição como norma jurídica suprema criou as condições necessárias
para que se admitisse aos juízes a função de controlar a legitimidade constitucional das leis.
Somente há supremacia da Constituição quando se extraem conseqüências concretas para as
normas com pretensão de validez opostas à Carta, isto é, quando se pode expulsar do
ordenamento jurídico a norma editada em contradição com a Lei Maior. O controle
jurisdicional de constitucionalidade foi o instrumento adotado para se sancionar uma plena e
efetiva supremacia da Constituição 41
.
O reconhecimento de que a Constituição é norma jurídica aplicável à solução de pendências
foi decisivo para que se formasse a doutrina do judicial review, pela qual o Judiciário se
habilita a declarar não-aplicáveis normas contraditórias com a Constituição. O
constitucionalismo moderno ganhava assim um de seus elementos mais característicos, com
antecipação ao que veio a ocorrer, bem mais tarde, na Europa 42
.
A doutrina do judicial review, contudo, não fez o seu ingresso na História de modo
assepticamente cerebrino. Conquanto os “pais fundadores” já considerassem correta a recusa
pelos juízes em aplicar leis contrárias à Constituição 43
, o judicial review não chegou a ser
40VALDÉS, ob. cit., p. 162/163.
41VALDÉS, ob. cit., p. 134.
42Consideram-se como princípios fundamentais do constitucionalismo moderno, além da supremacia da
Constituição, a soberania popular, os direitos fundamentais e o postulado do governo limitado, a que se ligam os
princípios da separação de poderes, a independência do Judiciário e a responsabilidade política dos governantes,
princípios acolhidos pioneirametne pela Declaração de Direitos da Virgínia de 1776. Cf. DIPPEL, Horst.
Modern Constitucionalism, an Introduction to a History in Need of Writing. The Legal History Review, Leiden:
Martinus Nijhoff Publishers, v. 73, p. 154-155, 2005.
43Lê-se em O federalista: “Uma Constituição é, de fato, a lei básica e como tal deve ser considerada pelos juízes.
Em conseqüência, cabe-lhes interpretar seus dispositivos [...]. Sempre que a vontade do Legislativo, traduzida
instituído expressamente na Constituição americana. O controle jurisdicional da
constitucionalidade das leis nos EUA resulta de uma construção pretoriana, armada num
tempo de extrema tensão política, no contexto de disputa de poder, logo no início da vida
republicana, entre os partidos Federalista, que dominava o Congresso Nacional e o Executivo
até as eleições de 1800, e o Republicano (ou Antifederalista) – aquele não se abstendo de se
valer de meios radicais para manter a posição hegemônica 44
.
em suas leis, se opuser à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não
àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas leis ordinárias”. (O federalista. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1984. p. 578 – Capítulo 78)
44Por exemplo, durante o Governo Federalista, foi aprovada a Lei de Sedição, que ensejou que os juízes,
nomeados pelos Federalistas, punissem criminalmente os adversários políticos, que criticassem o Presidente
Adams ou o Congresso Federalista. (Cf. NOWARK; ROTUNDA. Constitutional Law. St. Paul: West Publishing
Co., 1995. p. 1)
32 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
Em 1800, os federalistas, desgastados e acossados por problemas conjunturais, perderam as
eleições para o Congresso e para a Presidência da República. Foi eleito para o Executivo o
republicano Thomas Jefferson.
Não obstante federalista, o Presidente Adams deveria continuar no cargo até março de 1801.
Nesse intervalo, os federalistas entenderam de continuar a protagonizar a vida pública,
instalando-se no Poder Judiciário. Aprovaram, então, uma Lei do Judiciário, que criava
dezesseis tribunais federais em vários pontos do território americano. Cuidaram de preencher
as vagas com partidários federalistas. Esses tribunais viriam a liberar os juízes da Suprema
Corte americana das cansativas viagens por todo o país, que lhes ocupava a maior parte do
ano. Essas viagens eram necessárias, porque eram os juízes da Suprema Corte que, na
companhia de juízes estaduais, julgavam apelações em casos federais nos Estados-membros.
Os cargos que se abriram nos novos tribunais federais eram vitalícios e poderiam, assim,
abrigar próceres entre os federalistas de modo irreversível pelo novo governo 45
.
Os federalistas, entre as eleições e a posse de Jefferson, criaram também numerosos outros
cargos de menor importância, ligados ao Judiciário, contando-se entre eles mais de quarenta
cargos de juiz de paz no Distrito de Colúmbia, em que se situa a Capital dos EUA. O cargo de
juiz de paz não era vitalício, sendo provido para mandato de cinco anos.
Nos três meses que antecederam a posse de Jefferson, em 1801, vagou o cargo de Presidente
da Suprema Corte. Adams não viu ninguém melhor para ocupá-lo do que o seu próprio
Secretário de Estado, John Marshall 46
. A pedido de Adams, porém, Marshall desempenhou as
funções de Secretário de Estado até a antevéspera da posse de Thomas Jefferson. Cabia a
Marshall apor selo nos diplomas de nomeação e encaminhá-los aos nomeados para os novos
cargos do Judiciário, procedimentos necessários para as posses respectivas.
45Cf. ACKERMAN, Bruce. The Failure or the Founding Fathers. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
2005, passim, especialmente p. 124-125 e 128-130.
46Na realidade, Marshall não foi a primeira escolha de Adams. Foi indicado, depois que John Jay (um dos
autores do Federalista) recusou o posto, desanimado, aos 55 anos, com as viagens pelo país a que eram obrigados
os juízes da Suprema Corte. A recusa se deu sem que Jay soubesse que, dias depois, essas viagens seriam
suprimidas pela Lei Federalista do Judiciário. (Cf. ACKERMAN, ob. cit., p. 124-125)
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 33
A nomeação tanto dos juízes dos tribunais federais como dos juízes de paz teve que ser feita
às pressas, já que o termo final do mandato de Adams se aproximava. Alguns desses juízes
foram nomeados na noite anterior à posse dos Republicanos, daí a alcunha de juízes da meia
noite com que, às vezes, são referidos.
Um dos que deveria ser empossado chamava-se William Marbury. Ele fora indicado juiz de
paz pelo Presidente da República, confirmado pelo Congresso, no seu último dia ainda
federalista. O selo foi aposto pelo Secretário John Marshall, mas o diploma deveria, depois
disso, ser enviado ao nomeado, o que terminou por ser esquecido no tumulto do último dia do
Governo Adams.
Os republicanos chegaram ao poder particularmente irritados com as manobras federalistas no
Judiciário, o que torna fácil compreender por que, quando Marbury cobrou o envio do ato já
assinado e aprovado pelo Congresso Nacional, o novo Secretário de Estado, James Madison,
instruído por Jefferson, o recusasse peremptoriamente.
Marbury, então, resolveu processar o novo Secretário de Estado, valendo-se de uma ação
criada por uma Lei de 1789, que adicionara um writ of mandamus à lista das ações cometidas
à competência originária da Suprema Corte. Com isso, pretendia obter uma ordem para que
Madison lhe enviasse o diploma indispensável para a sua posse.
O Caso Marbury v. Madison agitou perigosamente o novo cenário político norte-americano.
O Presidente Jefferson entendeu que a Suprema Corte não poderia obrigar o Executivo à
prática do ato desejado por Marbury. O Secretário Madison esnobou o Tribunal, não
apresentando nenhuma defesa. A Corte, então, marcou o início do julgamento do writ para
1802. Em resposta, o Congresso, agora dominado pelos republicanos, alterou o calendário de
funcionamento da Suprema Corte, suprimindo dele o período que havia sido designado para o
julgamento do caso 47
.
O Congresso Nacional não se bastou com essa medida. Jefferson tomou como prioridade do
início da sua gestão a derrubada da Lei do Judiciário, aprovada há pouco pelo Congresso
federalista. Em julho de 1802, é editada nova lei, repudiando a Lei do Judiciário, o que deixou
os federalistas em estado de choque.
47NOWARK; ROTUNDA, ob. cit., p. 2.
34 DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA
Com a nova legislação, todos os nomeados pelo Governo Adams para os importantes cargos
nos tribunais federais perderam o emprego, e os juízes da Suprema Corte deveriam voltar a
viajar pelo país, julgando apelações em casos de interesse federal. Um Juiz da Suprema Corte,
Samuel Chase, chegou a conclamar que os seus colegas se recusassem a participar desses
julgamentos. Os magistrados, porém, não o seguiram. Chase chegou a sofrer um processo de
impeachment, de que se livrou apenas porque o processo demorou a ser concluído no
Congresso Nacional e novas conjunturas políticas o favoreceram 48
.
O clima de beligerância era inequívoco. E é nesse quadro – em que as instituições
democráticas corriam sensíveis riscos e em que pressões crescentes ameaçavam aluir a força e
a independência do Judiciário – que a Suprema Corte, em 1803, afirma o seu poder de
declarar a inconstitucionalidade de leis do Congresso Nacional e a superioridade da sua
interpretação da Constituição, deitando as bases do judicial review. Essa proclamação de
força do Judiciário somente não provocou reações incendiárias graças à habilidade como foi
concatenada.
Ao redigir a decisão da Suprema Corte para o Caso Marbury v. Madison, Marshall afirmou
que a retenção do título necessário para a posse de Marbury era imprópria, mas negou a
Marbury a ordem impetrada. Isso porque o writ de que Marbury se valera havia sido incluído
na lista dos temas da competência originária da Suprema Corte por lei ordinária. Segundo
Marshall, a competência originária da Suprema Corte estava fixada pela Constituição, não
podendo ser alargada por diploma infraconstitucional. A lei que o pretendesse fazer entraria
em atrito com o Texto Magno. Aqui, então, desenvolveu a tese de que a lei inconstitucional é
inválida e de que cabe ao Judiciário assim declará-la.
O caso era perfeito para que Marshall sustentasse essas teses, incluindo nos livros jurídicos
precedente decisivo para o fortalecimento do Judiciário e para o constitucionalismo futuro.
Com a solução encontrada, o Executivo republicano não foi compelido a entregar o diploma a
Marbury e não teve por que se rebelar. Afirmou-se, não obstante, e sem provocar retaliação, a
autoridade do poder Judiciário, superior à do Legislativo e à do Executivo, em tema de
interpretação e aplicação da Constituição.
Diz-se que Marshall teria ficado tão empolgado com a possibilidade de afirmar o poder da
Suprema Corte que teria desprezado algumas circunstâncias relevantes, que poderiam ter
conduzido a desfecho diferente para o caso. Mais ainda, lembra-se de que Marshall, por ter
participado ativamente da nomeação de Marbury, deveria ter-se afastado do processo.
48Cf. ACKERMAN, ob. cit., p. 150, 157, 167, 172 e 188 e 220-221.
DIREITO PÚBLICO Nº 14 – Out-Nov-Dez/2006 – DOUTRINA BRASILEIRA 35
O fato é que o caso ostenta enorme relevo para a história da afirmação da supremacia da
Constituição, para a fixação do máximo valor jurídico dos textos constitucionais e para a
compreensão do controle jurisdicional de constitucionalidade como mecanismo inerente a
essas características da Constituição.
O Caso Marbury v. Madison reclama superioridade para o Judiciário, argumentando,
essencialmente, com a idéia de que a Constituição é uma lei e que a essência da Constituição
é ser um documento fundamental e vinculante. Desenvolve a tese de que interpretar as leis
insere-se no âmbito das tarefas próprias do Judiciário. Em caso de conflito entre dois
diplomas, o juiz deve escolher, segundo a técnica aplicável, aquele que haverá de reger a
situação levada a julgamento. Cabe, por isso, ao Judiciário, diante de uma hipótese de conflito
entre uma lei infraconstitucional e a Constituição, aplicar esta última e desprezar a primeira.
Afinal, como todos os Poderes Públicos devem-se sujeitar à Constituição, e uma vez que
incumbe ao Judiciário a tarefa de interpretar em derradeira instância a Constituição, os atos
dos demais poderes podem ser anulados por decisão do Judiciário, na qualidade de intérprete
máximo da Constituição.
A doutrina do controle judicial articula, portanto, três assertivas básicas:
a) a Constituição é concebida para ser a lei principal do País;
b) cabe ao Judiciário a função de interpretar e aplicar a Constituição nos casos
trazidos à sua apreciação, podendo recusar valia ao ato que infringe a Constituição;
c) a interpretação judicial é final e prepondera sobre a avaliação dos demais poderes
49.
É interessante notar que o tema do controle de constitucionalidade continuou a inspirar
cuidados por muito tempo. Por isso mesmo, somente cinco décadas mais tarde, em 1857, no
Caso Dred Scott, tornou a Suprema Corte a julgar uma lei do Congresso Nacional
incompatível com a Constituição. O precedente se conta no rol das decisões má-afamadas da
História Judiciária americana. A Suprema Corte disse inconstitucional lei que garantia a
liberdade de negros que passassem por Estados não-escravagistas. A decisão é tida como um
dos estopins da guerra de secessão.
Como se percebe, o valor normativo supremo da Constituição não surge, de pronto, como
uma verdade auto-evidente, mas é resultado de reflexões propiciadas pelo desenvolvimento da
História e pela busca de meios mais eficientes de controle do poder, em prol dos valores
básicos da convivência social e política que inspiram os textos constitucionais.
49NOWAK; ROTUNDA, ob. cit., p. 10.

Nenhum comentário: